Falar do 1º de maio, Dia do
Trabalhador, é falar de lutas seculares das classes trabalhadoras. É recordar as
conquistas alcançadas. É reforçar a esperança de irmos mais além nos direitos
dos trabalhadores. É compreender os novos desafios, sem esquecer os antigos. É
combater todos eles com veemência e pujante determinação.
As rápidas transformações,
proporcionadas pelas novas tecnologias, proporcionaram igualmente a
transformação das relações laborais. A Uberização dos serviços à tarefa, a
indústria 4.0, o teletrabalho e muitos outros conceitos laborais modernos, são exemplos
dessa transformação.
Neste Dia do Trabalhador,
gostaria de recordar e trazer para 2022 o emblemático texto de José Mário
Branco, F.M.I., criado em 1979 e por si apresentado no Teatro Aberto LISBOA no Dia
do Trabalhador de 1981.
F.M.I.
(José
Mário Branco)
(Introdução)
“ Vou,
vou-vos mostrar / Mais um pedaço da minha vida / Um pedaço um pouco especial / Trata-se
de um texto que foi escrito / Assim, de um só jorro / Numa noite de Fevereiro
de 79 / E que talvez tenha um ou outro pormenor / Que já não é muito actual / Eu
vou-vos dar o texto tal e qual como eu o escrevi nessa altura / Sem ter
modificado nada / Por isso vos peço que não se deixem distrair por esses
pormenores / Que possam ser já não muito actuais / E que isso não contribua
para desviar a vossa atenção / Do que me parece ser o essencial neste texto / Chama-se
FMI / Quer dizer, Fundo Monetário Internacional / Não sei porque é que se riem
/ É uma organização democrática dos países todos
Que se
reúnem, como as pessoas / Em torno de uma mesa para discutir os seus assuntos /
E no fim tomar as decisões que interessam a todos / É o internacionalismo
monetário
(Canção
/ Texto performativo)
Cachucho
não é coisa que me traga a mim
Mais
novidade do que lagostim
Nariz
que reconhece o cheiro do pilim
Distingue
bem o Mortimor do Meirim
A
produtividade, ora aí está, quer dizer
Há
tanto nesta terra que ainda está por fazer
Entrar
por aí a dentro, analisar, e então
Do meu
'attaché-case' sai a solução!
FMI
Não há graça que não faça o FMI
FMI O
bombástico de plástico para si
FMI
Não há força que retorça o FMI
Discreto
e ordenado mas nem por isso fraco
Eis a
imagem 'on the rocks' do cancro do tabaco
Enfio
uma gravata em cada fato-macaco
E meto
o pessoal todo no mesmo saco
A
produtividade, ora aí está, quer dizer
Não
ando aqui a brincar, não há tempo a perder
Batendo
o pé na casa, espanador na mão
É só
desinfectar em superprodução!
FMI
Não há truque que não lucre ao FMI
FMI O
heróico paranóico hara-kiri
FMI
Panegírico, pro-lírico daqui
Palavras,
palavras, palavras e não só
Palavras
para si e palavras para dó
A
contas com o nada que swingar o sol-e-dó
Depois
a criadagem lava o pé e limpa o pó
A
produtividade, ora nem mais, célulazinhas cinzentas
Sempre
atentas
E
levas pela tromba se não te pões a pau
Num
encontrão imediato do 3º grau
FMI
Não há lenha que detenha o FMI
FMI
Não há ronha que envergonhe o FMI
FMI
Entretém-te
filho, entretém-te
Não
desfolhes em vão este malmequer que bem-te-quer
Mal-te-quer,
vem-te-quer, ovomalt'e-quer
Messe
gigantesca, vem-te vindo, VIM na cozinha, VIM na casa-de-banho
VIM no
Politeama, VIM no Águia D'ouro, VIM em toda a parte, vem-te filho
Vem-te
comer ao olho, vem-te comer à mão
Olha
os pombinhos pneumáticos que te arrulham por esses cartazes fora
Olha a
Música no Coração da Indira Gandi
Olha o
Moshe Dayan que te traz debaixo d'olho
O
respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?
Nós
somos um povo de respeitinho muito lindo
Saímos
à rua de cravo na mão sem dar conta de que saímos à rua de cravo na mão a horas
certas, né filho?
Consolida
filho, consolida, enfia-te a horas certas no casarão da Gabriela que o
malmequer vai-te tratando do serviço nacional de saúde
Consolida
filho, consolida, que o trabalhinho é muito lindo
O teu
trabalhinho é muito lindo, é o mais lindo de todos
Como o
Astro, não é filho?
O
cabrão do Astro entra-te pela porta das traseiras, tu tens um gozo do caraças,
vais dormir entretido, não é?
Pois
claro, ganhar forças, ganhar forças para consolidar
Para
ver se a gente consegue num grande esforço nacional estabilizar esta
destabilização filha-da-puta, não é filho?
Pois
claro!
Estás
aí a olhar para mim
Estás
a ver-me dar 33 voltinhas por minuto
Pagaste
o teu bilhete, pagaste o teu imposto de transação e estás a pensar lá com os
teus zodíacos:
Este
tipo está-me a gozar, este gajo quem é que julga que é?
Né
filho? Pois não é verdade que tu és um herói desde de nascente?
A ti
não é qualquer totobola que te enfia o barrete, meu grande safadote!
Meu
Fernão Mendes Pinto de merda, né filho?
Onde
está o teu Extremo Oriente, filho?
A-ni-ki-bé-bé,
a-ni-ki-bó-bó
Tu és
Sepúlveda, tu és Adamastor, pois claro
Tu
sozinho consegues enrabar as Nações Unidas com passaporte de coelho, não é
filho?
Mal
eles sabem, pois é, tu sabes o que é gozar a vida!
Entretém-te
filho, entretém-te!
Deixa-te
de políticas que a tua política é o trabalho, trabalhinho, porreirinho da
Silva,
E
salve-se quem puder que a vida é curta e os santos não ajudam quem anda para
aqui a encher pneus com este paleio de Sanzala em ritmo de pop-chula, não é
filho?
A one,
a two, a one two three
FMI
dida didadi dadi dadi da didi
FMI
Come
on you son of a bitch!
Come
on baby a ver se me comes!
'Camóne'
Luís Vaz, amanda-lhe com os decassílabos que eles já vão saber o que é
meterem-se com uma nação de poetas!
E zás,
enfio-te o Manuel Alegre no Mário Soares
Zás,
enfio-te o Ary dos Santos no Álvaro de Cunhal
Zás,
enfio-te a Natalia Correia no Sá Carneiro
Zás,
enfio-te o Zé Fanha no Acácio Barreiros
Zás,
enfio-te o Pedro Homem de Melo no Parque Mayer
E
acabamos todos numa sardinhada ao integralismo Lusitano
A
estender o braço
Meio
Rolão Preto, meio Steve McQueen
Ok
boss, tudo ok
Estamos
numa porreira meu
Um
tripe fenomenal
Proibido
voltar atrás
Viva a
liberdade, né filho?
Pois,
o irreversível, pois claro, o irreversívelzinho
Pluralismo
a dar com um pau, nada será como dantes
Agora
todos se chateiam de outra maneira, né filho?
Ora
que porra, deixa lá correr o marfil, homem, andas numa alta, pá, é assim mesmo
Cada
um a curtir a sua, podia ser tão porreiro, não é?
Preocupações,
crises políticas pá?
A
culpa é dos partidos pá!
Esta
merda dos partidos é que divide a malta pá
Pois
pá, é só paleio pá
O
pessoal na quer é trabalhar pá!
Razão
tem o Jaime Neves pá!
Olha
deixaste cair as chaves do carro!
Pois
pá!
Que é
essa orelha de preto que tens no porta-chaves?
É pá,
deixa-te disso, não destabilizes pá!
Eh,
faz favor, mais uma bica e um pastel de nata
Uma
porra pá, um autentico desastre o 25 de Abril
Esta
confusão pá, a malta estava sossegadinha
A bica
a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa
Tá
bem, essa merda da pide pá, Tarrafais e o carágo
Mas no
fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos
bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é
que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se
chama arriscar, ah?
Meia
dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o
estrangeiro, pá
Isto é
tudo a mesma carneirada!
Oh sr.
guarda venha cá, á
Venha
ver o que isto é, é
O
barulho que vai aqui, i
O neto
a bater na avó, ó
Deu-lhe
um pontapé no cu, né filho?
Tu
vais conversando, conversando
Que ao
menos agora pode-se falar
Ou já
não se pode?
Ou já
começaste a fazer a tua revisãozinha constitucional tamanho familiar, ah?
Estás
desiludido com as promessas de Abril, né?
As
conquistas de Abril!
Eram
só paleio a partir do momento que tas começaram a tirar e tu ficaste quietinho,
né filho?
E tu
fizeste como o avestruz
Enfiaste
a cabeça na areia
Não é
nada comigo, não é nada comigo, né?
E os
da frente que se lixem
E é
por isso que a tua solução é não ver
é não
ouvir, é não querer ver, é não querer entender nada
Precisas
de paz de consciência
Não
andas aqui a brincar, né filho?
Precisas
de ter razão
Precisas
de atirar as culpas para cima de alguém
E
atiras as culpas para os da frente
Para
os do 25 de Abril
Para
os do 28 de Setembro
Para
os do 11 de Março
Para
os do 25 de Novembro
Para
os do... que dia é hoje, ah?
FMI
Dida didadi dadi dadi da didi
FMI
Não há
português nenhum que não se sinta culpado de qualquer coisa, não é filho?
Todos
temos culpas no cartório
Foi
isso que te ensinaram
Não é
verdade?
Esta
merda não anda
Porque
a malta, pá
A
malta não quer que esta merda ande
Tenho
dito
A
culpa é de todos
A
culpa não é de ninguém
Não é
isto verdade?
Quer-se
dizer
Há culpa
de todos em geral e não há culpa de ninguém em particular! Somos todos muita
bons no fundo, né?
Somos
todos uma nação de pecadores e de vendidos, né?
Somos
todos, ou anti-comunistas ou anti-faxistas
Estas
coisas até já nem querem dizer nada
Ismos
para aqui
Ismos
para acolá
As
palavras é só bolinhas de sabão
Parole
parole parole e o Zé é que se lixa
Cá o
pintas é sempre o mexilhão
Eu
quero lá saber deste paleio vou mas é ao futebol
Pronto
Viva o
Porto, viva o Benfica! Lourosa! Lourosa! Marrazes! Marrazes!
Fora o
arbitro, gatuno! Qual gatuno, qual caralho!
Razão
tinha o Tonico de Bastos para se entreter, né filho?
Entretém-te
filho, com as tuas viúvas e as tuas órfãs
Que o
teu delegado sindical vai tratando da saúde aos administradores
Entretém-te,
que o ministro do trabalho trata da saúde aos delegados sindicais
Entretém-te
filho, que a oposição parlamentar trata da saúde ao ministro do trabalho
Entretém-te,
que o Eanes trata da saúde à oposição parlamentar
Entretém-te,
que o FMI trata da saúde ao Eanes
Entretém-te
filho e vai para a cama descansado que há milhares de gajos inteligentes a
pensar em tudo neste mesmo instante
Enquanto
tu adormeces a não pensar em nada
Milhares
e milhares de tipos inteligentes e poderosos com computadores, redes de policia
secreta
Telefones,
carros de assalto, exércitos inteiros, congressos universitários, eu sei lá!
Podes
estar descansado que o Teng Hsiao-ping está a tratar de ti com o Jimmy Carter
O
Brezhnev está a tratar de ti com o João Paulo II
Tudo
corre bem, a ver quem se vai abotoar com os 25 tostões de riqueza que tu vais
produzir amanhã nas tuas oito horas
A ver
quem vai ser capaz de convencer de que a culpa é tua e só tua se o teu salário
perde valor todos os dias
Ou de
te convencer de que a culpa é só tua se o teu poder de compra é como o rio de
S. Pedro de Moel
Que se
some nas areias em plena praia
Ali a
10 metros do mar em maré cheia e nunca consegue desaguar de maneira que se
possa dizer: porra, finalmente o rio desaguou!
Vão te
convencer de que a culpa é tua e tu sem culpa nenhuma, tens tu a ver, tens tu a
ver com isso, não é filho?
Cada
um que se vá safando como puder, é mesmo assim, não é?
Tu
fazes como os outros, fazes o que tens a fazer
Votas
à esquerda moderada nas sindicais
Votas
no centro moderado nas deputais
E
votas na direita moderada nas presidenciais!
Que
mais querem eles, que lhe ofereças a Europa no natal?!
Era o
que faltava!
É
assim mesmo, julgam que te levam de mercedes, ora toma
Para
safado, safado e meio, né filho?
Nem
para a frente nem para trás
E eles
que tratem do resto, os gatunos, que são pagos para isso, né?
Claro!
Que se lixem as alternativas, para trabalho já me chega
Entretém-te
meu anjinho, entretém-te
Que
eles são inteligentes, eles ajudam, eles emprestam, eles decidem por ti,
decidem tudo por ti
Se
hás-de construir barcos para a Polónia ou cabeças de alfinete para a Suécia
Se
hás-de plantar tomate para o Canada ou eucaliptos para o Japão, descansa que
eles tratam disso
Se
hás-de comer bacalhau só nos anos bissextos
Ou
hás-de beber vinho sintético de Alguidares-de-Baixo!
Descansa,
não penses em mais nada
Que
até neste país de pelintras se acho normal
Haver
mãos desempregadas
E se
acha inevitável haver terras por cultivar!
Descontrai
baby, come on descontrai
Afinfa-lhe
o Bruce Lee
Afinfa-lhe
a macrobiótica
O
biorritmo, o hoscópio
Dois
ou três ovniologistas
Um
gigante da ilha de Páscoa
E uma
Grace do Mónaco de vez em quando para dar as boas festas às criancinhas!
Piramiza
filho, piramiza
Antes
que os chatos fujam todos para o Egipto
Que
assim é que tu te fazes um homenzinho
E até
já pagas multa se não fores ao recenseamento
Pois
pá, isto é um país de analfabetos, pá!
Dá-lhe
no Travolta
Dá-lhe
no disco-sound
Dá-lhe
no pop-chula
Pop-chula
pop-chula
Iehh
iehh
J.
Pimenta forever!
Quanto
menos souberes a quantas andas melhor para ti
Não te
chega para o bife?
Antes no
talho do que na farmácia
Não te
chega para a farmácia?
Antes
na farmácia do que no tribunal
Não te
chega para o tribunal?
Antes
a multa do que a morte
Não te
chega para o cangalheiro?
Antes
para a cova do que para não sei quem que há-de vir
Cabrões
de vindouros, ah?
Sempre
a merda do futuro, a merda do futuro
E eu
ah? Que é que eu ando aqui a fazer?
Digam
lá, e eu?
José
Mário Branco, 37 anos
Isto é
que é uma porra
Anda
aqui um gajo cheio de boas intenções
A
pregar aos peixinhos
A
arriscar o pêlo, e depois?
É só
porrada e mal viver é?
O
menino é mal criado, o menino é 'pequeno burguês'
O
menino pertence a uma classe sem futuro histórico
Eu sou
parvo ou quê?
Quero
ser feliz porra
Quero
ser feliz agora
Que se
foda o futuro
Que se
foda o progresso
Mais
vale só do que mal acompanhado
Vá
mandem-me lavar as mãos antes de ir para a mesa
Filhos
da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!
Deixem-me
em paz porra, deixem-me em paz e sossego
Não me
emprenhem mais pelos ouvidos caralho
Não há
paciência
Não há
paciência
Deixem-me
em paz caralho
Saiam
daqui
Deixem-me
sozinho, só um minuto
Vão
vender jornais e governos e greves e sindicatos e polícias e generais para o
raio que vos parta!
Deixem-me
sozinho
Filhos
da puta
Deixem
só um bocadinho
Deixem-me
só para sempre
Tratem
da vossa vida que eu trato da minha
Pronto,
já chega
Sossego
porra
Silêncio
porra
Deixem-me
só, deixem-me só, deixem-me só
Deixem-me
morrer descansado
Eu
quero lá saber do Artur Agostinho e do Humberto Delgado
Eu
quero lá saber do Benfica e do bispo do Porto
Eu
quero se lixe o 13 de Maio e o 5 de Outubro
E o
Melo Antunes e a rainha de Inglaterra e o Santiago Carrilho e a Vera Lagoa
Deixem-me
só porra, rua, larguem-me
Desopila
o fígado, arreda, T'arrenego Satanás, filhos da puta
Eu
quero morrer sozinho ouviram?
Eu
quero morrer
Eu
quero que se foda o FMI
Eu
quero lá saber do FMI
Eu
quero que o FMI se foda
Eu
quero lá saber que o FMI me foda a mim
Eu vou
mas é votar no Pinheiro de Azevedo se eu tornar a ir para o hospital, pronto
Bardamerda
o FMI, o FMI é só um pretexto vosso seus cabrões
O FMI
não existe
O FMI
nunca aterrou na Portela coisa nenhuma
O FMI
é uma finta vossa para virem para aqui com esse paleio
Rua,
desandem daqui para fora
A
culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é vossa, a culpa é
vossa, a culpa é vossa
Oh
mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe, oh mãe
Mãe,
eu quero ficar sozinho
Mãe,
não quero pensar mais
Mãe,
eu quero morrer mãe
Eu
quero desnascer
Ir-me
embora
Sem
sequer ter que me ir embora
Mãe,
por favor
Tudo
menos a casa em vez de mim
Outro
maldito que não sou senão este tempo que decorre entre fugir de me encontrar
E de
me encontrar fugindo
De quê
mãe?
Diz,
são coisas que se me perguntem?
Não
pode haver razão para tanto sofrimento
E se
inventássemos o mar de volta
E se
inventássemos partir, para regressar
A
partir e aí nessa viagem
Ressuscitar
da morte às arrecuas que me deste
Partida
para ganhar
Partida
de acordar
Abrir
os olhos
Numa
ânsia colectiva de tudo fecundar
Terra,
mar, mãe
Lembrar
como o mar nos ensinava a sonhar alto
Lembrar
nota a nota o canto das sereias
Lembrar
o depois do adeus
E o
frágil e ingénuo cravo da Rua do Arsenal
Lembrar
cada lágrima
Cada
abraço
Cada
morte
Cada
traição
Partir
aqui com a ciência toda do passado, partir, aqui, para ficar
Assim
mesmo
Como
entrevi um dia
A
chorar de alegria
De
esperança precoce e intranquila
O azul
dos operários da Lisnave a desfilar
Gritando
ódio apenas ao vazio
Exército
de amor e capacetes
Assim
mesmo na Praça de Londres o soldado lhes falou
Olá
camaradas, somos trabalhadores
Eles
não conseguiram fazer-nos esquecer
Aqui
está a minha arma para vos servir
Assim
mesmo, por detrás das colinas onde o verde está à espera se levantam
antiquíssimos rumores
As
festas e os suores
Os
bombos de Lavacolhos
Assim
mesmo senti um dia
A
chorar de alegria, de esperança precoce e intranquila
O
bater inexorável dos corações produtores, os tambores
De
quem é o carvalhal?
É
nosso!
Assim
te quero cantar
Mar
antigo a que regresso
Neste
cais está arrimado o barco sonho em que voltei
Neste
cais eu encontrei a margem do outro lado, Grandola Vila Morena
Diz
lá, valeu a pena a travessia?
Valeu
pois
Pela
vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe
No
fundo deste mar, encontrareis tesouros recuperados
De mim
que estou a chegar do lado de lá para ir convosco
Tesouros
infindáveis que vos trago de longe e que são vossos
O meu
canto e a palavra
O meu
sonho é a luz que vem do fim do mundo
Dos
vossos antepassados que ainda não nasceram
A
minha arte é estar aqui convosco
E
ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez
Sou
português, pequeno burguês de origem
Filho
de professores primários
Aprendiz
de feiticeiro, faltam-me dentes
Sou o
Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto
Muito
mais vivo que morto
Contai
com isto de mim para cantar e para o resto
Ser
solidário assim, para além da vida
Por
dentro da distância percorrida
Fazer
de cada perda uma raiz
E
improvavelmente ser feliz
De
como aqui chegar não é misterio contar
O que
já sabe quem souber
O
estrume em que germina a ilusão
Fecundará,
por certo, esta canção
Ser
solidário sim, por sobre a morte
Que
depois dela só o tempo é forte
E a
morte nunca o tempo arredime
Mas
sim, o amor dos homens que se exprime
De
como aqui chegar não vale a pena
Já que
a moral da história é tão pequena
Que
nunca por vingança eu vos daria
No
ventre das canções, sabedoria “
Fonte:
Musixmatch
Compositores:
José Mário Branco
Bloco
de Esquerda – Almodôvar
Filipe
M Santos, 01/05/2022
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