USOS E ABUSOS NO CONTEXTO DA
CRISE EPIDEMIOLÓGICA
Muito se tem falado sobre a
crise sanitária que vivemos presentemente. O surto viral COVID-19, identificado
primeiramente na China, espalhou-se por diversos países do mundo e infelizmente,
também chegou às nossas portas. Traz consigo o desalento e a incerteza, e
porque é novo, a frustração motivada pela incapacidade de o debelar tal como uma
gripe comum.
O desalento, a incerteza a
frustração no contexto COVID-19 não se sente apenas no plano da saúde, faz-se
sentir também em muitas outras dimensões da nossa vida pessoal, comunitária,
económica ou laboral, e far-se-á sentir muito, certamente, para além do quadro
de pandemia atual.
De um momento para o outro as nossas
rotinas foram alteradas, fossem essas alterações impostas por decreto, ou para
cumprimento voluntário das recomendações das autoridades, ou simplesmente porque
de um momento para outro tornaram-se vítimas do chico-espertismo de outros.
Quero aqui focar-me nas
situações de chico-espertismos que, de certa forma, todos e todas nós conseguimos
identificar, desde o mais simples açambarcamento de produtos essenciais nos
supermercados, mercearias e superfícies comerciais equivalentes, ao oportunismo
patronal que à boleia do que se está a passar, simplesmente descarta-se dos
trabalhadores que trabalham para si.
Certamente, cada um de nós tem
o dever de se manter em isolamento social, para tal deve constituir um pequeno
armazenamento de bens de primeira necessidade para evitar o mais possível sair
do seu espaço de isolamento. Como em tudo, o ponto de equilíbrio está em
definir que quantidades necessita para fazer face a esse isolamento. Talvez antes
da crise o ouvinte já tivesse por hábito adquirir bens essenciais para uma
semana deixando para o dia-a-dia produtos alimentares com validade mais curta,
por exemplo o pão. É uma rotina que pode manter, desde que observe preceitos de
higiene recomendada ao deslocar-se aos locais onde costuma fazer compras. Nesta
mesma situação o chico-esperto ou a chica-esperta, tende a fazer de forma diferente,
açambarcando tudo quanto a sua condição financeira permita, mesmo que isso o
leve a perder parte dos produtos que adquiriu, por não os consumir no prazo.
Esta é uma atitude que conduz a duas outras coisas. A primeira é a escassez temporária
de produtos porque os produtores e distribuidores não os conseguem repor atempadamente.
A segunda é o chico-espertismo dos comerciantes, que se aproveitam da demanda
irracional e inflacionam o preço dos produtos.
Os comerciantes,
empreendedores, empresários ou qualquer outro nome que designe quem tem algum
bem para vender, principalmente bens essenciais, muitos deles veem esta crise como
uma oportunidade para sacar mais uns cobres a quem deles precisa. É a regra de
mercado, dizem. Se tem muita procura: aumenta-se o preço. Se é escasso,
aumenta-se também, porque agora tem mais valor. Assim, o chico e a chica espertos
que são, contribuem para que se generalize o pânico nos consumidores: uns
acabam por cair no açambarcamento e outros na frustração de não ter recursos
financeiros para adquirir esses mesmos bens. Todos e todas nós conhecemos
algumas situações gritantes, por exemplo as caixas de máscaras em determinada
superfície comercial que passaram a custar 150€, o equivalente ao que muitas
famílias têm orçamentado para a sua alimentação num mês, ou ainda desinfetante
para as mãos que de 2, 3 ou menos euros passaram a ter um preço 10 vezes ou
mais caro.
Mas o chico-espertismo não se
fica por aqui, nas relações comerciais. Existe também nas relações laborais. Por
recomendação da DGS, ou por decreto, algumas empresas estão ou deveriam estar encerradas,
outras estão a funcionar com significativas alterações na sua organização e à
boleia das medidas aprovadas, os chicos e as chicas espertas da classe patronal,
de um momento para o outro iniciaram processos de despedimentos, gozo de férias
e toda uma panóplia de ações que, aliviando do fardo salarial, acrescenta crise
à crise. Os trabalhadores em regimes precários são as primeiras vítimas destes
processos, mas no fundo, quando milhares de trabalhadores são descartados desta
forma, a crise social e laboral assim gerada, acaba por bater à porta de todos
nós, a mim que estou aqui e a si que me está a ouvir desse lado. Tomemos como
exemplo a suspensão dos projetos que, aqui ao lado, em Neves-Corvo mantinham a
trabalhar um contingente de cerca 1200 trabalhadores de empresas contratadas
para os desenvolver. Muitos destes trabalhadores, por não terem outra opção, vendiam
a sua força de trabalho com vínculos precários, contratos de curta duração sucessivamente
“renovados” à margem da lei, ou de trabalho temporário, ou outros vínculos de
criatividade tal que nem consigo alcançar. Faço uma ou duas perguntas: Quantos destes
trabalhadores estão agora no desemprego e quantos vão lá chegar brevemente? Qual
o peso de 1000 ou 1200 trabalhadores na economia da região? Afinal tenho uma
terceira pergunta: sobre quem vai cair essa fatura?
O certo é que os chicos e as
chicas espertas vão-se aproveitando da melhor forma que sabem e até da que não
sabem e inventam, isto porque estão respaldados em leis confusas, permissivas e
cada vez menos protetoras da parte mais fraca que é o trabalhador.
É por isso urgente estabelecer
medidas para proteger o emprego e salvaguardar os rendimentos dos trabalhadores
e trabalhadoras.
Vivemos tempos excecionais que
exigem respostas excecionais. O Bloco de Esquerda apresentou algumas propostas,
que vos trouxe aqui na passada semana, mas porque a tempos excecionais
correspondem também desafios excecionais, decidiu dar visibilidade às muitas denúncias
que lhe chegam, tendo criado para esse fim a plataforma DESPEDIMENTOS.PT
Tal como na plataforma de
informação do Ministério da Saúde:
se mostram os dados da evolução
da epidemia em Portugal, na plataforma recém-criada pelo Bloco:
são mostrados os abusos e a
irresponsabilidade daqueles que, aproveitando a crise, abusam dos trabalhadores.
Até ao momento foi identificado um caso no distrito de Beja, mas infelizmente,
temos a perceção que muitos mais poderiam estar ali assinalados. Cabe-lhe a si,
ouvinte e trabalhador lesado denunciar.
O acesso à plataforma WWW.DESPEDIMENTOS.PT é público
e não carece de vinculação à estrutura. As ocorrências reportadas em formulário
eletrónico próprio são anónimas, salvaguardando assim o seu autor.
Resta a todos e todas seguir
as recomendações da Direção Geral de Saúde à letra e a todos e todas, compete
estar atento aos comportamentos sociais, laborais e económicos que não o
respeitem.
Cristina Ferreira/Filipe M
Santos, 27/03/2020