sexta-feira, 25 de março de 2022

Cristina Ferreira - Crónicas V (25MAR2022)

 


DUPLA EFEMÉRIDE DE 24 DE MARÇO

 


No passado dia 24 de Março assinalou-se uma dupla efeméride.

Por um lado, celebrou-se nessa data o facto do regime democrático ter ultrapassado em duração os longos 48 anos do regime ditatorial. Meio século do século XX português sob o domínio de uma ditadura que suprimiu as liberdades públicas, proibiu o pluralismo político e associativo, interditou o direito à greve e os sindicatos livres, impôs a censura prévia a todas as formas de expressão e perseguiu, prendeu e torturou dezenas de milhares de mulheres e homens que tiveram a coragem de lhe resistir. Nesse dia em que a democracia começa a durar mais tempo do que a ditadura do Estado Novo, por isso mesmo, se inicia a celebração do cinquentenário do 25 de Abril, da Liberdade, do fim da guerra colonial e da enorme esperança que a Democracia despertou.

Mas o 24 de Março tem outro simbolismo prévio que está associado à efeméride posterior da duração da democracia. Marca o início da revolta estudantil contra o regime, o corte do movimento estudantil com a ditadura salazarista nesse 24 de Março de 1962, Dia do Estudante, que o regime proibiu brutalmente invadindo a Cidade Universitária de Lisboa com a polícia de Choque, atacando à coronhada os protestos estudantis que entretanto se concentraram no Estádio Universitário. Aí acorreu o então Reitor da Universidade Clássica, Marcelo Caetano, interpondo-se entre o cerco policial e os estudantes e pedindo-lhes que se dirigissem a um restaurante no Lumiar onde a reitoria oferecia um jantar. Quando em manifestação para lá se encaminharam, no Campo Grande, os estudantes foram desprevenidamente alvo de uma nova e particularmente violenta carga da polícia de choque que originou grande número de feridos. Nessa noite, reunidos ainda no tal restaurante onde acabaram por chegar, os dirigentes da Reunião Inter Associações (RIA) – cujo secretário-geral era Jorge Sampaio – decretaram o então ainda pudicamente chamado “luto académico”, ou seja, a greve geral às aulas, maciçamente seguida em toda a Academia nos dias seguintes.

O acontecimento teve uma imensa repercussão: esse grupo privilegiado que então eram os estudantes universitários, constituía a jovem elite em que o poder estabelecido confiava para a continuidade do regime. Era ela que contra ele se levantava, mercê da sua juventude, do seu acesso à cultura, da sua inusitada capacidade de abraçar as causas generosas da justiça e da liberdade e de superar os constrangimentos da sua origem social. E a força, o entusiasmo e a alegria dessa mobilização representariam a partir daí uma constante ameaça para o regime da qual ele jamais se lograria libertar até à sua queda.

Nesses dias de turbulência que se estende a todas as universidades do país (Lisboa, Coimbra e Porto), no início de Abril, Marcelo Caetano consegue obter uma audiência com o Ministro da Educação Nacional, um ultraconservador lente coimbrão que dava pelo nome de Lopes de Almeida, com o Reitor e os dirigentes das Associações de Estudantes. Surpreendentemente, dessa reunião sai uma autorização do Ministro para a realização do Dia do Estudante, festejada com a alegria da vitória pelo movimento estudantil. Por ele, mas não por Salazar, talvez quem, no interior do regime, melhor anteviu onde conduziria o deixar correr a torrente vitoriosa do protesto estudantil. Convocado o Conselho de Ministros, conclave que só reunia em contextos muito especiais, o então chefe do Governo interpela diretamente um acobardado Ministro da Educação: “afinal V. Exa autorizou ou não o Dia do Estudante?” Em pânico, Lopes de Almeida mentiu respondendo que o tinha proibido. O ditador sabia que ele mentia e se expunha ao vexame público de dar o dito por o não dito e faltar à palavra dada ao Reitor e aos estudantes. Mas para o seu propósito isso era o menos, e retorquiu sibilino: “Fez V. Exa muito bem. Se assim não fosse, seriam eles a estar sentados nestas cadeiras daqui a dez anos”. Mesmo com a renovação da proibição e a dura repressão que se seguiu contra o que seria a mais prolongada greve estudantil nas universidades portuguesas (ela prolongar-se-ia pela greve aos exames), o velho ditador só erraria por dois anos.

O 24 de Março ficou, até hoje, como o Dia do Estudante. Mal sabiam as várias gerações de jovens que corajosamente o empunhariam como símbolo do antifascismo e do anticolonialismo nos anos que se seguiram que algures no futuro, fruto de uma insondável justiça histórica, ele se tornaria o dia a mais da democracia portuguesa sobre a ditadura.

 

Artigo de Fernando Rosas publicado no site Abril é Agora

 

Caixa Alta, Rádio Castrense

Cristina Ferreira, 25/03/2022


sexta-feira, 18 de março de 2022

Cristina Ferreira - Crónicas V (18MAR2022)

 


E CANCELAR A DÍVIDA EXTERNA DA UCRÂNIA? A Opinião De Mariana Mortágua


 

Levanta-se na Ucrânia, entre quem resiste à invasão, a exigência do cancelamento da dívida externa do país, em particular a parcela pertencente ao FMI. Esta medida não trará a paz, mas é essencial para oferecer a este povo já tão castigado um horizonte de democracia e direitos sociais.

Há uma razão para a comunidade imigrante ucraniana ser tão importante em Portugal. A maioria destas pessoas chegou durante a década de 1990, enfrentou a clandestinidade e a xenofobia e trabalhou muito abaixo das qualificações que trazia. Chegaram em busca de melhores condições de vida, fugindo de uma economia frágil, marcada pela corrupção endémica e pela formação de oligarquias locais, tal como denunciado por organizações como a Transparência Internacional ou Repórteres sem Fronteiras.

Para além do êxodo massivo da sua população - a Ucrânia é o oitavo país do Mundo com mais emigrantes - a crise, a pandemia e a guerra forçaram a Ucrânia a recorrer a sucessivos empréstimos do FMI e da Comissão Europeia. Como sabemos por cá, estas "ajudas" saem caras: a privatização da energia e da banca pública, a introdução de limites nominais à despesa do Estado (mesmo durante a pandemia) são exemplos do tratamento imposto ao povo ucraniano até às vésperas da invasão russa.

A resistência à agressão e a necessidade de reconstrução impõem agora uma pressão insuportável sobre o Orçamento do país mais pobre da Europa (lugar disputado com a Moldávia). Com uma economia capturada por oligarcas regionais - nas indústrias extrativa e financeira -, não se vislumbra como a Ucrânia encontrará os recursos para lançar projetos infraestruturais e desenvolver-se como democracia. Os juros que a Ucrânia paga por uma dívida externa que ascende a 125 mil milhões de euros correspondem a 12% do orçamento anual do país e servem de justificação para o adiamento da reconstrução dos serviços públicos essenciais, bloqueada pelas regras de austeridade impostas pelo FMI e pela Comissão Europeia.

Por todas estas razões, levanta-se na Ucrânia, entre quem resiste à invasão, a exigência do cancelamento da dívida externa do país, em particular a parcela pertencente ao FMI. Esta medida não trará a paz, mas é essencial para oferecer a este povo já tão castigado um horizonte de democracia e direitos sociais.

 

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 15 de março de 2022

Sobre o/a autor(a): Mariana Mortágua – Deputada/Dirigente do Bloco de Esquerda/Economista.


Caixa Alta, Rádio Castrense

Cristina Ferreira, 18/03/2022


sexta-feira, 4 de março de 2022

Cristina Ferreira - Crónicas V (04MAR2022)


 

Bloco de Esquerda: uma história com avanços e recuos do partido que trouxe a política portuguesa para o século XXI.

 

Em 1999 surge a Assembleia fundadora do Bloco de Esquerda. Francisco Louçã e Luís Fazenda são os primeiros deputados eleitos pelo partido. Recusam sentar-se nas filas secundárias e protestam de pé ao plenário até conquistarem para o Bloco um lugar na primeira fila à esquerda no hemiciclo.

Em 2000 acontece a Primeira Convenção do Bloco de Esquerda, realizada na Aula Magna.  Violência doméstica passa a ser considerada na lei como um crime público, por iniciativa do Bloco.

Em 2001 a iniciativa do Bloco abriu caminho à aprovação da lei que descriminalizou o consumo de drogas em Portugal | Fernando Rosas foi o primeiro candidato apoiado pelo Bloco à Presidência da República.

Em 2002 o Bloco elegeu pela primeira vez um deputado pelo círculo do Porto, João Teixeira Lopes

2003 - A III Convenção do Bloco realiza-se em maio de 2003 e reafirma o combate ao governo PSD/CDS, ao código laboral de Bagão Félix e à política da guerra.

Em 2004 o Bloco alcançou a sua primeira representação no Parlamento Europeu, com a eleição de Miguel Portas. | A concorrer pela primeira vez com a sua sigla às eleições regionais da Madeira, o Bloco elege Paulo Martins.

2005 - Nas legislativas de 2005, o Bloco mais que duplicou a votação e os eleitos de 2002, elegendo 8 deputados numa eleição que o PS conquista com maioria absoluta.

Em 2006 Francisco Louçã é o candidato do Bloco às presidenciais. A Marcha pelo Emprego percorreu o país durante 17 dias para divulgar propostas como a redução do horário de trabalho ou a proibição de despedimentos em empresas com lucros.

Em 2007 o Bloco elege um vereador em Lisboa, o independente José Sá Fernandes.

Em 2008 Zuraida Soares e José Cascalho são os primeiros deputados do Bloco na Assembleia Legislativa Regional nos Açores. A Marcha contra a Precariedade percorreu vários distritos do país, chamando a atenção para o abuso do trabalho temporário e o plano do PS para rever o Código Laboral, acentuando a precarização do trabalho.

Em 2009 0 Bloco atingiu o seu melhor resultado até então nas três eleições do ano. Passou de um para três eurodeputados e de oito para dezasseis deputados em São Bento. Nas autárquicas, elegeu nove vereadores e manteve a presidência da Câmara de Salvaterra de Magos.

Em 2010 o Parlamento aprova a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Bloco participou nos protestos contra a cimeira da NATO em Lisboa

Em 2011 a candidatura presidencial de Manuel Alegre, apoiada pelo Bloco, não impediu Cavaco de ser reeleito à primeira volta. PS e direita assinam o memorando da troika e as eleições legislativas que se seguem penalizam o Bloco, reduzindo a metade o seu grupo parlamentar.

Em 2012 o Bloco faz campanha contra as políticas de empobrecimento seguidas pelo governo e a troika. A Convenção do Bloco aprova um modelo de coordenação paritário. João Semedo e Catarina Martins substituem Francisco Louçã na liderança do partido.

Em 2013 nas eleições autárquicas, o Bloco perde a Câmara de Salvaterra e passa de nove para oito vereadores a nível nacional. Elege pela primeira vez em Torres Novas e Portimão e participa na vitória histórica da esquerda no Funchal.

Em 2014, após uma Convenção com duas moções praticamente empatadas, acaba o modelo de coordenação paritária e Catarina Martins assume o lugar de porta-voz do partido. Nas eleições europeias: com um resultado inferior ao de 2009, o Bloco só consegue eleger Marisa Matias para o Parlamento Europeu.

Em 2015 nas eleições regionais da Madeira, o Bloco recupera presença no parlamento, ao eleger dois deputados enquanto que nas eleições legislativas o Bloco alcança o melhor resultado de sempre e elege 19 deputados. Com a direita em minoria no parlamento, é assinado o acordo que viabiliza o governo do PS nesta legislatura.

Em 2016 Marisa Matias alcança 10% dos votos e torna-se a mulher mais votada nas eleições presidenciais em Portugal, ultrapassando o resultado de Maria de Lourdes Pintasilgo em 1986.  Nas eleições regionais dos Açores, o Bloco alcança o melhor resultado de sempre, formando pela primeira vez um grupo parlamentar com dois deputados. 

2017 - Nas eleições autárquicas de 2017, o Bloco aumentou a sua representação, alargando-a aos executivos de Lisboa, Amadora, Vila Franca de Xira, Abrantes e Almada. Bloco e PS assinam acordo com 80 pontos, incluindo manuais escolares gratuitos até ao 12º ano e um programa público de renda acessível.

Em 2018 Trabalhadores das pedreiras comemoram com o Bloco a vitória da equiparação do regime de acesso à reforma antecipada ao dos mineiros.

2019, ano de eleições, o Bloco reforça a bancada no Parlamento Europeu, com a eleição de Marisa Matias e José Gusmão. Na Madeira, perde os dois deputados eleitos em 2015. Nas legislativas, elege 19 deputados, mas o PS recusa renovar o acordo político à esquerda, pondo fim à “geringonça”. Ao fim de um ano de duras negociações, é aprovada a nova Lei de Bases da Saúde, baseada no projeto apresentado por António Arnaut e João Semedo, que já não viveram para ver a sua proposta aprovada.

2020 - Eleições regionais dos Açores: Bloco aumenta votação e mantém a bancada de dois deputados conquistada em 2016. | Na discussão sobre o Orçamento de 2021, o Bloco anuncia o voto contra por considerar insuficientes as verbas para responder às necessidades do SNS e da proteção social a quem perdeu o emprego na pandemia.

2021 - Nas eleições presidenciais Marisa Matias volta a ser a candidata apoiada pelo Bloco, obtendo 4% dos votos. Nas eleições autárquicas, o Bloco viu reduzir o número de eleitos, mas alcançou pela primeira vez um lugar na vereação da cidade do Porto.

Finalmente, em 2022, nas eleições convocadas após o chumbo do Orçamento para 2022, o PS obtém maioria absoluta e o Bloco é penalizado com a redução da bancada para cinco deputados.

 

Caixa Alta, Rádio Castrense

Cristina Ferreira, 04/03/2020