PODER
LOCAL, CIDADANIA E PARTICIPAÇÃO
Na
origem do Poder Local, como princípio democrático plasmado na génese do texto
constitucional que o consagra, está a marca indelével da participação popular
como construção e constituição dos órgãos institucionais representativos das populações
e do associativismo.
Esta
conquista de Abril é um impetuoso e criativo processo dinâmico de intervenção e
de mobilização, tendo-se constituído como motor de transformação das condições
de vida, espaço de afirmação de direitos e de formação democrática.
A
natureza e característica colegial e plural do Poder Local, vertida nas leis
originárias de atribuições de competências e de autonomia, são princípios
inerentes à dinâmica transformadora ocorrida nos primeiros anos de vida das
autarquias locais.
Se
muito se fez pelas terras com este poder de proximidade assente na defesa do
interesse coletivo das populações, também é verdade que com a perpetuação de
autarcas e a criação de teias viciadas em jogos de poder, em muito se subverteu
os princípios da matriz constituinte.
Em
variados municípios instalaram-se poderes presidencialistas, opacos e
clientelares, asfixiando populações pelo garrote da dependência mercantil, pela
interferência chantagista, pela determinação sobre o emprego – muitas são as
terras em que a autarquia é o maior empregador direto e o maior cliente de
serviços.
A
“vista larga” do desenvolvimento coletivo e participado, transformou-se numa
visão redutora de alcance imediato e de domínio absoluto em jeito de “dono do
quintal”. O benefício do desempenho de cargos políticos de proximidade e
convivência, deu lugar a relações de afinidade pela conivência.
Para
completar a destituição dos objetivos comunitários, sucessivos governos e
recorrentes deliberações legislativas têm, ardilosamente, contribuído para a
delapidação dos alicerces edificantes de participação popular nas autarquias.
Do vasto leque de ataques, faço referência a duas situações concretas
recentemente tratadas.
A
descabida Lei Relvas que excluiu do mapa “à la carte” mais de mil freguesias e
reduziu em cerca de 20.000 o número de eleitos locais, foi objeto de debate com
a aprovação de uma lei-quadro que estabelece os critérios da criação,
modificação e extinção de freguesias. Mesmo tendo revisto parcialmente a
iniquidade das impostas agregações que resultaram em uniões fictícias de
freguesias, sempre contestadas pelas populações, na realidade a correção dos
erros grosseiros ficou muito aquém do justamente reivindicado. Foi criado um
conjunto de requisitos não coincidentes com as exigências legais constantes da
situação anterior à agregação e só por insistência do Bloco de Esquerda é que
ficou contemplada a possibilidade de a população despoletar o processo através
de um instrumento de auscultação. Já não foi aceite uma outra reivindicação do
Bloco que era a de que esta vontade de recuperação da freguesia fosse aferida e
certificada por um outro meio de audição como é o referendo local.
O
governo e o PS, com o beneplácito presidencial, retardaram o processo ao ponto
de prorrogar para um tempo posterior às eleições autárquicas qualquer decisão
sobre esta matéria. Aliás, PS e PSD acederam por arrasto a este restauro
democrático porque perceberam que este seria um tema de reivindicação de
campanha levantado por muitos dos seus autarcas.
Outra
situação diz respeito a uma outra concertação PS e PSD, num reavivar do bloco
central, a propósito da alteração à lei orgânica das eleições para as
autarquias locais. Depois da aprovação de um conjunto de entraves à
participação cidadã com obstáculos legais às candidaturas de listas
independentes, o PS, num ato de contrição política, abriu o debate para recuar
no que tinha aprovado. Novamente com uma intervenção preponderante do Bloco de
Esquerda foram ultrapassadas algumas das restrições mais gritantes, como era o
número repetido de subscrições exigidas aos movimentos de cidadania, assim como
outros obstáculos, e a absurda impossibilidade de candidatura simultânea à
Câmara e à Assembleia Municipal.
É
inadmissível que se façam apelos aos valores da cidadania e da construção de
uma democracia participativa e na realidade se deem passos de entrave à
participação de movimentos de cidadãos nos atos eleitorais.
A
valorização do poder local tem de ser efetiva e acompanhada de meios e
condições que permitam o exercício das competências, que por sua vez têm de
valorizar a participação cidadã como requisito de um bom desempenho desse
poder. Uma população mais atenta, mais participativa é seguramente muito mais
exigente.
A
cidadania não se pode resumir à proclamação de um manual de direitos. A
cidadania constrói-se pela intervenção. Constrói-se pela permanente ação, mesmo
que muitas vezes motivada por causas específicas e esporádicas. Constrói-se em
função das condições criadas, pelos mecanismos ao dispor, pelo acesso à
informação e ao conhecimento das situações e pela democraticidade de todos
poderem participar – não se pode setorizar por estratos económicos, sociais ou
profissionais.
É
muito desta matriz de participação popular que nos compete saber recuperar e
reavivar, porque é sempre tempo de ser exigente. Nesse sentido, como primeira
medida das candidaturas do Bloco de Esquerda, preconizo a criação de mecanismos
de auscultação, de sugestões, de propostas cidadãs através de plataforma
eletrónica e de contactos diretos com associações representativas da população,
como meio de participação coletiva na construção dos programas eleitorais.
Por: José
Maria Cardoso - Professor, dirigente e deputado do Bloco de Esquerda
Caixa Alta, Rádio Castrense
Cristina
Ferreira, 02/07/2021