sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Cristina Ferreira - Crónicas IV (02OUT2020)

 



MAFALDA, A CONTESTARÁRIA

 

Em determinada época da sua vida, o célebre, melancólico, gentil e minucioso génio argentino Joaquín Lavado, mais conhecido por Quino dá voz a Mafalda, a menina contestatária, que expressa um irremediável desejo de democracia e liberdade de espírito que a ditadura militar na Argentina teimava em calar. O humor, a corrosão e a fina ironia foram as suas armas para mostrar as falhas da sociedade, mas também, como deveria ser o futuro da mesma.

Após a eleição democrática de um governo civil na Argentina talvez fosse altura de parar pois achava que a tarefa contestatária da Mafalda tinha acabado.

Voltou a pedido dos seus leitores e acompanhada por novos personagens.

O autor, Quino, não desmobilizou dos seus propósitos democráticos e sociais pois não tinha ilusões acerca da natureza humana, fosse qual fosse o alinhamento, pelo que, com os seus desenhos continuou a lutar contra a estupidez e falta de honestidade humana. Quino voltou a desenhar pelas razões mais justas que se possam imaginar como, por exemplo, para a UNICEF, na defesa de Os Direitos das Crianças.

Mafalda não é só uma personagem da banda desenhada, na opinião de Umberto Eco: Mafalda é, de facto, uma heroína que recusa o mundo tal como este é, bem como um país cheio de contrastes sociais, que se questiona sobre o estado da humanidade e a razão de esta funcionar tão mal.

Mafalda relaciona-se de modo constante com o mundo adulto, mundo esse que não estima nem respeita, pelo contrário, ridiculariza e rejeita-o, reivindicando sempre o seu direito a permanecer uma menina que não quer assumir o universo adulto dos pais.

Mafalda, essa pequena personagem de papel e tinta, que detesta sopa, é uma questionadora de costumes, representa uma juventude inquieta à procura de respostas num mundo em transformação política e social.

Quino morreu aos 88 anos, deixa para trás uma vasta obra que, juntamente com o seu pessimismo, tem uma lição importantíssima – a de procurarmos ser, sempre, melhores pois, afinal, o grande problema da família humana é que todos querem ser o pai.

As batalhas continuam atuais, talvez o género humano não tenha solução, mas os homens e mulheres são obstinados no jogo da vida e nunca a ela afeitos. Cada qual erguendo alto o seu balão de orgulho ou de esperança, encandeia o passo nos passos dos mais, seguindo juntos ou sós, vestidos de gala e de assombro. 

 

Caixa Alta, Rádio Castrense

Cristina Ferreira, 2/10/2020


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