Era a
“hora de ira para a cama, não podia ser tarde pois tinha que apanhar o comboio
de manhã cedo.” Começa por nos contar Mariana Aiveca sobre a sua experiência do
momento em que a revolução chegou. Prossegue assim: “Nessa noite de 24 de Abril
de 1974, deitei-me como de costume, com o auscultador do rádio no ouvido e,
como de costume percorria os vários programas até adormecer. “E depois do
adeus” passou, cantarolei baixinho e achei normal. Rodando o botão do velho
transístor ficou na renascença. Quando ouvi ler os primeiros versos de Grândola
não achei normal e pensei baixinho… Ai, ai este homem vai preso! A seguir o
Zeca cantou e comecei a perceber que a liberdade podia passar por aqui. Não era
sonho, foi real!”.
Notem
como 48 anos de repressão do antigo regime condicionaram as vidas de tantas mulheres
e homens deste país, para quem um simples verso de uma canção, suscitava o
receio pela vida da pessoa que a proferia e até mesmo o temor de pensar que
tinha de ser “baixinho”.
Este era
um país decrépito, analfabeto, doente, ignorante, faminto, em luto pelos seus
filhos que foram morrer numa guerra lá fora, mas apesar de tudo até era um país
sereno, respeitador e feliz na sua ignorância e à mercê de uma casta política
de elite, respaldada numa polícia secreta que atuava com toda a força do estado
sobre quem ousasse questionar a sua miséria.
Outrora
uma utopia, a Revolução dos Cravos rompeu com tudo isto, e acima de tudo,
trouxe-nos a possibilidade de escolher a sociedade que queremos, atuando
individual e coletivamente nos caminhos da democracia.
Muitas
vitórias foram alcançadas, nesta jovem democracia, que conta agora 48
primaveras e delas resultaram significativos avanços para nossa sociedade. Mas
também recuos e hesitações que, por medo ou falta de imaginação, impedem a sua
plena transformação.
Assistimos
ao ressurgimento de coisas que julgávamos fechadas à chave do lado de lá da
porta que fechámos há 48 anos atrás.
Recentemente
chegados à casa da democracia, personificados na figura de alguns atores
políticos, assistimos à reafirmação e massificação ideológica e política da
extrema-direita, e à replicação e reforço destes nos diferentes órgãos de
soberania quer ao nível nacional, quer ao nível local. É a partir de lá, que
estes saudosistas do outro tempo, exercerão, ou melhor, exercem junto do povo,
os SEUS valores de liberdade, os SEUS valores de democracia, os SEUS valores de
igualdade de oportunidades.
Os
dois últimos anos têm sido uma prova de fogo à nossa democracia. Passámos por
uma pandemia que, por decreto, nos restringiu a Liberdade, e suspendeu direitos
que julgávamos inalienáveis. Passámos por uma crise social, laboral e económica
que abalaram milhares de famílias em todo o país. Passámos pela exaustão e
quase colapso dos serviços de saúde, e pela quase estagnação dos demais
serviços públicos que dávamos como garantidos.
Há que
refinar, impulsionar, atrever-nos a alcançar mais longe, derrubar estigmas,
abandonar preconceitos e a cada dia concretizar e consolidar o sonho de
alcançar o inalcançável.
Neste
caminho que não é fácil, muitas vezes há armadilhas que fazem perigar todo o
esforço feito até aí e muitas mais vezes deparamo-nos com obstáculos no
percurso: a corrupção, a xenofobia, o racismo, o sexismo, a homofobia, a
escravidão e a precariedade laboral, a injustiça social, económica e judicial,
são alguns deles, e têm raízes tão profundas e complexas que por mais desmoralizantes
eles sejam, não são impossíveis de superar e combater.
Combater
a corrupção, não é dizer-se a favor do reforço de leis anticorrupção, e depois reprová-las
na Assembleia da República, ou pior, prestar serviço de defesa e de consultoria
aos alegados corruptores - é agir em coerência pessoal e coletiva contra esse
cancro da sociedade.
Criar
condições sociais justas para todos os homens e mulheres deste país, é combater
a injustiça social. Agir coerentemente, a nível pessoal e coletivo, não é jogar
ao faz de conta que se resolvem as coisas, quando na verdade criam-se
obstáculos e condições de acesso, trâmites, pontos e virgulas tais que excluem
tantos homens e tantas mulheres que somente alguns, poucos, podem beneficiar. E
o mesmo na justiça económica, e o mesmo na justiça judicial.
É
estúpido combater a xenofobia com xenofobia, igualmente com o racismo e o
sexismo e por aí em diante. Em outras palavras, o combate aos podres que
persistem na nossa sociedade, não se faz com mais podres. Este combate não é
feito de simpatias nem de palmadinhas nas costas, de coisas que soam bem aos
ouvidos, nem de populismos, nem de oratória exuberante de dedo em riste. Faz-se
com seriedade ideológica e ações coerentes pessoal e coletivamente.
O 25
de abril de 1974 foi o 1º dia de liberdade, mas também o primeiro de muitos
mais de responsabilidade e vigília contra a usurpação ou a sua evocação em
contextos contrários ao do seu significado.
Citando
Fernando Rosas, no contexto de um comício de campanha em janeiro: “Neste ano de
2022, em que a democracia passa a ter mais anos de vida que o longo calvário da
ditadura, permitam-me um apelo: um apelo a que se honre a memória dessa luta
que abriu as portas de Abril e se enfrente a extrema-direita com uma certeza:
NÃO PASSARÃO!
.
25 de
Abril, Sempre!
Fascismo,
nunca mais!
Almodôvar,
24 de abril de 2022
Filipe
M Santos
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