“UMA
JANELA DE RESPONSABILIDADE”
Reflete
a opinião de João Camargo, investigador em Alterações Climáticas, num artigo publicado
no Esquerda.net no dia 4 de junho de 2020, e que coloca a tónica no ambiente e
no capitalismo sempre oportunista, principalmente em situações de crise.
A
ideia de “regresso à normalidade” é a expressão máxima de alienação na
sociedade.
A
“normalidade” é um comboio desembestado em direção a um precipício.
As
expressões máximas dessa normalidade são a sexta extinção em massa de espécies
no planeta, a modificação extrema dos padrões climáticos da última era, a
disrupção do ciclo do azoto e a perda dramática de solos.
Estes
fenómenos não são futuros.
Estes
fenómenos são o presente.
Além
do “regresso à normalidade”, há a ideia de oportunidade. “Nas crises há sempre
oportunidades, por isso olho vivo que agora podemos beneficiar-nos da
instabilidade que existe para fazer dinheiro, para ganhar vantagem competitiva,
para avançarmos com a integração nos mercados internacionais, para aproveitar o
caos para ultrapassar constrangimentos anteriores, para destruir práticas
rígidas e abrir caminho para a inovação, aumentar a produtividade com novas
tecnologias e mutações industriais alterando a estrutura económica para criar
uma nova economia”.
Este
discurso é comum a um ministro do Ambiente brasileiro que diz que "é hora
de passar a boiada”, mas também a uma ministra canadiana que diz que “agora é
uma excelente altura para construir um oleoduto porque não pode haver
manifestações com mais de 15 pessoas.”.
Os
fenómenos que destroem o sustento da nossa vida coletiva não são independentes
da forma como funciona a nossa sociedade. A destruição de ecossistemas, o
desaparecimento de espécies, a crise climática, articulam-se com a forma de
organização da sociedade para rasgá-la.
Começam
por reabrir as velhas feridas (a maior parte das quais nunca se fechou) e
cicatrizes que nos corroeram historicamente: ódio à diferença, exploração de
classe, racismo, sexismo, homofobia, medo dos fenómenos migratórios, do
desemprego, da escassez, da fome.
Num
dos espectros mais avançados da alienação, propõe-se aprofundar o modo de
produção capitalista como resposta aos problemas que o mesmo criou.
Perante
a materialização dos riscos anunciados há décadas (crise climática, perda de
biodiversidade, disrupção de ciclos biogeoquímicos, guerras, deslocações
forçadas em massa), há quem prometa segurança e para uns escolhidos especiais,
o regresso a um passado mistificado, a uma história de cordel, contada de e
para os “vencedores” da mesma.
As
promessas políticas de um regresso ao passado são, nas melhor das hipóteses,
ingénuas e, enquanto projetos políticos, tenebrosas.
O
mundo em que vivíamos já não existe.
O
regresso à “normalidade” na sequência da crise da Covid19 é a aposta na
“segurança” de um passado normal, sem contar com um presente radicalmente
diferente. Também implica não tentar travar o futuro desembestado que são as
tendências que garantem a destruição de condições básicas para uma vida social
remotamente saudável.
O
que temos hoje não é uma janela de oportunidade. Já só existe uma janela de
responsabilidade. Essa responsabilidade é devida às gerações atuais e futuras,
é a responsabilidade de garantir que haverá condições para a viabilidade da
vida em sociedade. As vertentes ambientais aqui articulam-se obviamente com as
vertentes sociais. O medo de um planeamento social da produção para garantir a
vida nada mais é do que alienação.
Vivemos
numa economia planificada para a reprodução de capital e esta economia é
contrária à reprodução da vida, da diversidade, da justiça e da resiliência aos
choques que sofremos e sofreremos ainda mais no futuro.
É
necessário ultrapassar a alienação que transforma o debate público e social num
beco sem saída porque só procura respostas aos constrangimentos políticos e
económicos dentro do decadente capitalismo global.
A
janela de responsabilidade implica reconhecer a monumentalidade desta tarefa, a
coerência que será necessária para tentá-la e a possibilidade real de falhar.
Também implica reconhecer que só será atingida se for tentada e que não tentar
significa desistir da ideia de futuro.
Vivemos
hoje numa tentativa de regresso à normalidade no nosso país, com âncora na
limitada ideia de que é possível continuarmos no rumo da integração
internacional, da globalização, do capitalismo neoliberal. Não há sequer o
tradicional teatro político feito à volta de mudar alguma coisa para nada
mudar. Não há sequer um plano para resolver a crise social e económica
estritamente ligada à Covid19, quanto mais para o tsunami da crise ambiental e
climática.
A
janela de responsabilidade não será aberta pelos mecanismos institucionais, mas
somente pela mobilização social e reiterada para a ideia de um plano para a
sociedade, com centro na justiça, na reparação histórica, no reconhecimento dos
limites ambientais e na redistribuição de poder e riqueza.
Devemos
esta responsabilidade à vida.
Artigo
publicado em expresso.pt a 1 de junho de 2020
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