sexta-feira, 26 de junho de 2020

Cristina Ferreira - Crónicas III (26JUN2020)




SER MULHER (FEMINISTA)

Na indecisão de vos falar sobre feminismo ou da minha experiência como mulher, apercebi-me que, para mim, ambas estão tão interligadas que não as consigo separar completamente. Comecemos então.
Feminismo é o movimento que deseja direitos e oportunidades iguais para os géneros. Nas palavras de Chimamanda Ngozi, popularizadas através da canção Flawless de Beyoncé, “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e económica dos sexos”.
Embora a definição de feminista possa ser modificada, aqui e ali, fundamentalmente, ser feminista é reconhecer que, sistematicamente, as mulheres não são vistas como iguais, e querer essa igualdade. Reconhecer que há um sistema que dá privilégios a uns e não a outros, e querer mudá-lo. É querer igualdade.
A primeira vez que soube que não era igual, tinha 13 anos. Vinha da catequese, ia para casa com as minhas colegas. Passei por um homem sentado no degrau da entrada de uma casa: cajado na mão, boné na cabeça. Mais velho que o meu avô, de certeza. Passei por ele, atrás das minhas amigas. Nem o vi a mexer-se. Só senti a mão dele no meu rabo, tão depressa removida como tinha sido colocada.
Não me lembro do resto do caminho para casa. Lembro-me de sentir nojenta, 13 anos de idade e pútrida.
Contei aos meus pais, porque sempre me foi ensinado - por eles, pelos meus professores, pela sociedade - que deveria contar a um adulto quando não me sentisse em segurança, ou se alguém me tivesse tocado. Consegui meter a minha podridão, a vontade de vomitar com o nojo preso na garganta, de parte e contar-lhes. Estávamos à mesa. Pousei os garfos, tentei falar, explicar como me sentia. Disse o que se tinha passado.
Em defesa deles, disseram-me como defender quando me tocassem assim, que gente má deveria ser punida. Mas o nó na garganta passou para o estômago. Quem foi punida fui eu. Quem viveu com as consequências fui eu. Ninguém foi atrás do velho que me tocou no rabo quando passava pela praça.
Tenho outras experiências, mais recentes. Apitarem-me na rua, estando eu de saia ou calças, manga comprida ou alças, dia ou noite, sendo o “apitador” velho ou novo. Abrandarem o carro e oferecerem-me uma nota, e ter de continuar a andar. A última foi interessante, porque em vez de ser vista simplesmente como um naco de carne prazeroso à vista, fui vista como um naco de carne que poderia dar prazer físico em troca de dinheiro.
Sei de mais histórias, mas não são minhas para contar.
Se são mulheres, têm-nas.
Se são homens, podem perguntar- a qualquer mulher, na verdade. Todas nós as vamos ter. Dependem apenas na gravidade, na maneira como as processamos e contamos. Algumas histórias não nos afetam, outras contamos a rir, outras não contamos de todo. Em todas temos algo em comum: somos nós que carregamos o fardo. Ninguém vai atrás de quem nos afetou.
Talvez haja homens a ler/ouvir estas palavras que se revejam nelas, e estejam revoltados, desapontados por não mencionar casos masculinos. Eu percebo. Primeiro de tudo, lamento a vossa dor. Em segundo, apenas posso contar as minhas histórias. Espero que tenham coragem para contar as vossas, um dia, se o quiserem. Apoiar-vos-ei se tal acontecer. Eu sei como é sentir-se sozinho, sem apoio, completamente desprotegido.
Infelizmente, as experiências não pararam aos 13. De repente, tive de aprender a manobrar-me num mundo que era demasiado nova para viver, demasiado jovem para ter voz, demasiado mulher, porque a menina morreu a caminho de casa. Aos 14 odiava o meu corpo. Aos 15 via raparigas a serem gozadas por terem interesses femininos ou não femininos o suficiente. Aos 16 não queria ser inteligente, ou carinhosa, queria ser magra e bonita, porque apenas isso contava para ser amada. Diziam-me que as modelos das revistas levavam Photoshop, que não eram reais, para não me comparar, mas eu queria ser diferente porque via como as minhas outras colegas eram tratadas de forma diferente.
17. 18. 19. 20. 21. 22. Eu sou diferente.
Não tenho medo de morrer, tenho medo de ser violada.
Ser mulher é sentir o metal frio das chaves a aquecer entre os dedos quando caminhas na rua à noite. É a indiferença, ou o pânico, quando te apitam no meio da rua. É ser puta, cabra, vaca, mãe, esposa, mulher focada na carreira, é o “então já tens namorado?”, é o “quando te casas?”, “quando me dás netos?”, é a espectativa de ter filhos, carreira, chegar a casa e ter tudo impecável e ter jantar feito e ter tempo para namorar o marido e ter tempo para si própria e para os hobbies, e ter tempo de estar bonita. É atingir o pico da beleza aos 20, tentar mantê-lo aos 30, odiarmo-nos ao comprar o creme em promoção aos 40. É ter todos estes títulos e expectativas no primeiro minuto de vida - porque por muito que nos digam que podemos ser tudo o que queiramos (e tantas de nós compreenderam isso como “Tu tens de ser tudo”), ainda não temos a possibilidade de o ser sem ser questionadas.
Ser mulher é saber que éramos (somos?) vistas como úteros ambulantes, saber que não nos queriam dar o voto por sermos mulheres. É a mensagem que se manda às amigas para saber que se chegou a casa bem. É a raiva. É o silêncio quando nos calamos. É o nó na garganta de não conseguir falar. É culparmo-nos quando os outros falham. É ter que justificar a outro a tua própria existência. O teu valor intrínseco. É cansaço. Cansaço de carregar nos ombros todo um legado que nunca pedimos.
Há tanta coisa que não referi. Nunca poderia. As nossas experiências são tão únicas quanto uniformes. Uniforme é também a resposta dos outros quando contamos as nossas experiências. Silêncio. Aceitação. Não há uma mudança de comportamento, uma autorreflexão nas próprias ações. “Os outros são assim. Eu não.” Assim continuam meninas a morrer e mulheres a nascer antes de tempo. Entretanto, eu, sinto o sabor do sangue na língua de tanto a morder, porque ficar zangada não é uma opção, não é próprio de uma mulher. Pior, as minhas palavras valem menos se, por trás, tiverem essa emoção. Mais uma vez tenho de mudar para me apresentar ao mundo, tenho de ser o mais próximo possível essa mulher imaginada que me define sempre, quer esteja a tentar sê-la ou a fugir dela.
Pergunto-me se os homens também se sentem assim. Se têm medo de sair de casa, à noite, e não voltar. Se são apalpados e desumanizados e vêm isso como uma simples parte do dia. Se têm de ser tudo e sentem que são nada. Assumo que não sei - tantos fogem desta conversa quando é trazida à tona, e eu ainda tenho medo de ser apalpada quando me viro.
Vou morrer, velha e caquética, um dia. Sei que vou continuar a ser diferente aí. A luta que faço agora (as vezes que me calo, as vezes que me zango, as vezes que existo pelas minhas próprias condições, sem opinião de outrem) não irá me beneficiar. Talvez a próxima geração, se a tivermos. Mas quando sair hoje de casa, sei que sou diferente. E isto é apenas eu como mulher. Tantos outros têm lutas diferentes de mim, porque também eles são diferentes. Temos um desejo ardente de sermos iguais, tratados de forma igual. Mas não somos. E enquanto houver cegueira a esse facto, vamos morrendo enquanto somos vivos.
Eu nunca fui vosso igual. Eu não sou vosso igual.
Por favor, parem de me mentir.

Cristina Ferreira / Lia Santos, 26/06/2020


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