DUPLA
EFEMÉRIDE DE 24 DE MARÇO
No
passado dia 24 de Março assinalou-se uma dupla efeméride.
Por um
lado, celebrou-se nessa data o facto do regime democrático ter ultrapassado em
duração os longos 48 anos do regime ditatorial. Meio século do século XX
português sob o domínio de uma ditadura que suprimiu as liberdades públicas,
proibiu o pluralismo político e associativo, interditou o direito à greve e os
sindicatos livres, impôs a censura prévia a todas as formas de expressão e
perseguiu, prendeu e torturou dezenas de milhares de mulheres e homens que
tiveram a coragem de lhe resistir. Nesse dia em que a democracia começa a durar
mais tempo do que a ditadura do Estado Novo, por isso mesmo, se inicia a
celebração do cinquentenário do 25 de Abril, da Liberdade, do fim da guerra
colonial e da enorme esperança que a Democracia despertou.
Mas o
24 de Março tem outro simbolismo prévio que está associado à efeméride
posterior da duração da democracia. Marca o início da revolta estudantil contra
o regime, o corte do movimento estudantil com a ditadura salazarista nesse 24
de Março de 1962, Dia do Estudante, que o regime proibiu brutalmente invadindo
a Cidade Universitária de Lisboa com a polícia de Choque, atacando à coronhada
os protestos estudantis que entretanto se concentraram no Estádio Universitário.
Aí acorreu o então Reitor da Universidade Clássica, Marcelo Caetano,
interpondo-se entre o cerco policial e os estudantes e pedindo-lhes que se
dirigissem a um restaurante no Lumiar onde a reitoria oferecia um jantar.
Quando em manifestação para lá se encaminharam, no Campo Grande, os estudantes
foram desprevenidamente alvo de uma nova e particularmente violenta carga da
polícia de choque que originou grande número de feridos. Nessa noite, reunidos
ainda no tal restaurante onde acabaram por chegar, os dirigentes da Reunião
Inter Associações (RIA) – cujo secretário-geral era Jorge Sampaio – decretaram
o então ainda pudicamente chamado “luto académico”, ou seja, a greve geral às
aulas, maciçamente seguida em toda a Academia nos dias seguintes.
O
acontecimento teve uma imensa repercussão: esse grupo privilegiado que então
eram os estudantes universitários, constituía a jovem elite em que o poder
estabelecido confiava para a continuidade do regime. Era ela que contra ele se
levantava, mercê da sua juventude, do seu acesso à cultura, da sua inusitada
capacidade de abraçar as causas generosas da justiça e da liberdade e de
superar os constrangimentos da sua origem social. E a força, o entusiasmo e a
alegria dessa mobilização representariam a partir daí uma constante ameaça para
o regime da qual ele jamais se lograria libertar até à sua queda.
Nesses
dias de turbulência que se estende a todas as universidades do país (Lisboa,
Coimbra e Porto), no início de Abril, Marcelo Caetano consegue obter uma
audiência com o Ministro da Educação Nacional, um ultraconservador lente
coimbrão que dava pelo nome de Lopes de Almeida, com o Reitor e os dirigentes
das Associações de Estudantes. Surpreendentemente, dessa reunião sai uma
autorização do Ministro para a realização do Dia do Estudante, festejada com a
alegria da vitória pelo movimento estudantil. Por ele, mas não por Salazar,
talvez quem, no interior do regime, melhor anteviu onde conduziria o deixar
correr a torrente vitoriosa do protesto estudantil. Convocado o Conselho de
Ministros, conclave que só reunia em contextos muito especiais, o então chefe
do Governo interpela diretamente um acobardado Ministro da Educação: “afinal V.
Exa autorizou ou não o Dia do Estudante?” Em pânico, Lopes de Almeida mentiu
respondendo que o tinha proibido. O ditador sabia que ele mentia e se expunha
ao vexame público de dar o dito por o não dito e faltar à palavra dada ao
Reitor e aos estudantes. Mas para o seu propósito isso era o menos, e retorquiu
sibilino: “Fez V. Exa muito bem. Se assim não fosse, seriam eles a estar
sentados nestas cadeiras daqui a dez anos”. Mesmo com a renovação da proibição
e a dura repressão que se seguiu contra o que seria a mais prolongada greve
estudantil nas universidades portuguesas (ela prolongar-se-ia pela greve aos
exames), o velho ditador só erraria por dois anos.
O 24
de Março ficou, até hoje, como o Dia do Estudante. Mal sabiam as várias
gerações de jovens que corajosamente o empunhariam como símbolo do antifascismo
e do anticolonialismo nos anos que se seguiram que algures no futuro, fruto de
uma insondável justiça histórica, ele se tornaria o dia a mais da democracia
portuguesa sobre a ditadura.
Artigo
de Fernando Rosas publicado no site Abril é Agora
Cristina
Ferreira, 25/03/2022
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