sexta-feira, 27 de março de 2020

Cristina Ferreira - Crónicas III (27MAR2020)




USOS E ABUSOS NO CONTEXTO DA CRISE EPIDEMIOLÓGICA


Muito se tem falado sobre a crise sanitária que vivemos presentemente. O surto viral COVID-19, identificado primeiramente na China, espalhou-se por diversos países do mundo e infelizmente, também chegou às nossas portas. Traz consigo o desalento e a incerteza, e porque é novo, a frustração motivada pela incapacidade de o debelar tal como uma gripe comum.

O desalento, a incerteza a frustração no contexto COVID-19 não se sente apenas no plano da saúde, faz-se sentir também em muitas outras dimensões da nossa vida pessoal, comunitária, económica ou laboral, e far-se-á sentir muito, certamente, para além do quadro de pandemia atual.

De um momento para o outro as nossas rotinas foram alteradas, fossem essas alterações impostas por decreto, ou para cumprimento voluntário das recomendações das autoridades, ou simplesmente porque de um momento para outro tornaram-se vítimas do chico-espertismo de outros.

Quero aqui focar-me nas situações de chico-espertismos que, de certa forma, todos e todas nós conseguimos identificar, desde o mais simples açambarcamento de produtos essenciais nos supermercados, mercearias e superfícies comerciais equivalentes, ao oportunismo patronal que à boleia do que se está a passar, simplesmente descarta-se dos trabalhadores que trabalham para si.

Certamente, cada um de nós tem o dever de se manter em isolamento social, para tal deve constituir um pequeno armazenamento de bens de primeira necessidade para evitar o mais possível sair do seu espaço de isolamento. Como em tudo, o ponto de equilíbrio está em definir que quantidades necessita para fazer face a esse isolamento. Talvez antes da crise o ouvinte já tivesse por hábito adquirir bens essenciais para uma semana deixando para o dia-a-dia produtos alimentares com validade mais curta, por exemplo o pão. É uma rotina que pode manter, desde que observe preceitos de higiene recomendada ao deslocar-se aos locais onde costuma fazer compras. Nesta mesma situação o chico-esperto ou a chica-esperta, tende a fazer de forma diferente, açambarcando tudo quanto a sua condição financeira permita, mesmo que isso o leve a perder parte dos produtos que adquiriu, por não os consumir no prazo. Esta é uma atitude que conduz a duas outras coisas. A primeira é a escassez temporária de produtos porque os produtores e distribuidores não os conseguem repor atempadamente. A segunda é o chico-espertismo dos comerciantes, que se aproveitam da demanda irracional e inflacionam o preço dos produtos.

Os comerciantes, empreendedores, empresários ou qualquer outro nome que designe quem tem algum bem para vender, principalmente bens essenciais, muitos deles veem esta crise como uma oportunidade para sacar mais uns cobres a quem deles precisa. É a regra de mercado, dizem. Se tem muita procura: aumenta-se o preço. Se é escasso, aumenta-se também, porque agora tem mais valor. Assim, o chico e a chica espertos que são, contribuem para que se generalize o pânico nos consumidores: uns acabam por cair no açambarcamento e outros na frustração de não ter recursos financeiros para adquirir esses mesmos bens. Todos e todas nós conhecemos algumas situações gritantes, por exemplo as caixas de máscaras em determinada superfície comercial que passaram a custar 150€, o equivalente ao que muitas famílias têm orçamentado para a sua alimentação num mês, ou ainda desinfetante para as mãos que de 2, 3 ou menos euros passaram a ter um preço 10 vezes ou mais caro.

Mas o chico-espertismo não se fica por aqui, nas relações comerciais. Existe também nas relações laborais. Por recomendação da DGS, ou por decreto, algumas empresas estão ou deveriam estar encerradas, outras estão a funcionar com significativas alterações na sua organização e à boleia das medidas aprovadas, os chicos e as chicas espertas da classe patronal, de um momento para o outro iniciaram processos de despedimentos, gozo de férias e toda uma panóplia de ações que, aliviando do fardo salarial, acrescenta crise à crise. Os trabalhadores em regimes precários são as primeiras vítimas destes processos, mas no fundo, quando milhares de trabalhadores são descartados desta forma, a crise social e laboral assim gerada, acaba por bater à porta de todos nós, a mim que estou aqui e a si que me está a ouvir desse lado. Tomemos como exemplo a suspensão dos projetos que, aqui ao lado, em Neves-Corvo mantinham a trabalhar um contingente de cerca 1200 trabalhadores de empresas contratadas para os desenvolver. Muitos destes trabalhadores, por não terem outra opção, vendiam a sua força de trabalho com vínculos precários, contratos de curta duração sucessivamente “renovados” à margem da lei, ou de trabalho temporário, ou outros vínculos de criatividade tal que nem consigo alcançar. Faço uma ou duas perguntas: Quantos destes trabalhadores estão agora no desemprego e quantos vão lá chegar brevemente? Qual o peso de 1000 ou 1200 trabalhadores na economia da região? Afinal tenho uma terceira pergunta: sobre quem vai cair essa fatura?

O certo é que os chicos e as chicas espertas vão-se aproveitando da melhor forma que sabem e até da que não sabem e inventam, isto porque estão respaldados em leis confusas, permissivas e cada vez menos protetoras da parte mais fraca que é o trabalhador.

É por isso urgente estabelecer medidas para proteger o emprego e salvaguardar os rendimentos dos trabalhadores e trabalhadoras.

Vivemos tempos excecionais que exigem respostas excecionais. O Bloco de Esquerda apresentou algumas propostas, que vos trouxe aqui na passada semana, mas porque a tempos excecionais correspondem também desafios excecionais, decidiu dar visibilidade às muitas denúncias que lhe chegam, tendo criado para esse fim a plataforma DESPEDIMENTOS.PT

Tal como na plataforma de informação do Ministério da Saúde:




se mostram os dados da evolução da epidemia em Portugal, na plataforma recém-criada pelo Bloco:




são mostrados os abusos e a irresponsabilidade daqueles que, aproveitando a crise, abusam dos trabalhadores. Até ao momento foi identificado um caso no distrito de Beja, mas infelizmente, temos a perceção que muitos mais poderiam estar ali assinalados. Cabe-lhe a si, ouvinte e trabalhador lesado denunciar.

O acesso à plataforma WWW.DESPEDIMENTOS.PT é público e não carece de vinculação à estrutura. As ocorrências reportadas em formulário eletrónico próprio são anónimas, salvaguardando assim o seu autor.

Resta a todos e todas seguir as recomendações da Direção Geral de Saúde à letra e a todos e todas, compete estar atento aos comportamentos sociais, laborais e económicos que não o respeitem.




Cristina Ferreira/Filipe M Santos, 27/03/2020




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